por: Francisco Faulhaber
O exercício da vida indica a necessidade de sobrevivência. Isso porque, estar no tempo significa buscar a garantia de continuidade, não importa se jovem ou idoso, racional ou irracional, animal ou planta… Em cada forma de vida observamos que todos se dispõem a continuar – um impulso de querer viver. Portanto, lidar com a materialidade é um requisito da condição de ser, porque somos todos ela mesma.
Para nós, humanos, condicionar-se e condicionar a matéria se configura como um método de sistematizar a dinâmica da realidade, ultrapassando os limites estipulados pelo gene. Tudo isso, fruto, literalmente, da mani-pulação do que chamamos matéria prima, para a obtenção de um resultado (contraditório?) da própria Natureza. Desse esforço em continuar vivo surge a cultura, que logo se irradia com seus desdobramentos. Dos eventos mais significativos da estadia humana na Terra, o fogo, a roda, e até a disseminação de nossa espécie para todos os quatro cantos do Planeta, podem ser considerados motores para o ignição das estruturas de trabalho, assim como foram os lugares geográficos que nos impuseram a necessidade de adaptação, bem como os tipos de manifestações da nossa organização coletiva e cosmologia. Diante desses desafios da sobrevivência, e segundo as peculiaridades dos lugares, o homem pôde aprender um modo de existir interferindo diretamente na materialidade, e aquilo que seria pura expressão, diante do pensamento sobre a ação, se abre na possibilidade de algo essencialmente humano: o aprimoramento.
O mote da nossa reflexão, uma comparação entre modelos de trabalho, envolve, dentre outras coisas, a gênese desse aprimoramento. De fato, nossas vidas atualmente, encontram-se imersas em certos valores modernos, como a conversão matemática dos fenômenos, as consequências do processo secular, a superespecialização, etc. Entretanto, tais características não definem todo o sentido evolucionário contido no termo que estamos tratando. Ou seja, ao contrário das irrupções culturais da atitude filosófica e do Cristianismo, as marcas que desenhamos na matéria tem origem em nossas necessidades, e sempre nos acompanharam.
Nesse sentido, sabendo que das atividades primitivas de sobrevivência se constituiu o arcabouço simbólico das artes e dos ofícios, somos capazes de atravessar o tempo e observar que a essência dessas estruturas permanecem sempre presentes por todas as regiões, e conservam, até os dias atuais, a continuidade geracional e as singularidades daqueles que integram seus processos. E esse não foi um percurso fácil. Vale lembrar que, na maior parte da história, o “trabalho braçal” não era bem visto socialmente e a arte passa a ganhar um status diferenciado, ao menos no Ocidente, a partir do período da Renascença. Sendo assim, podemos dizer que o artista enquanto trabalhador finalmente passa a “existir” no momento em que passa a somar a racionalidade matemática e filosófica às suas habilidades artesanais (mecânicas), dentro de uma noção sensibilidade tida como intelectual. Por outro lado, os demais trabalhos artesanais continuaram “menores”, colocados em segundo plano. Essa é uma clara divisão entre utilidade e contemplação que reflete diretamente sobre quem faz.
Com a dispersão dos ideais positivistas, e o processo de industrialização consolidado, essa espécie de “tratamento reificado” se exacerbou. O indivíduo em seu labor, além de continuar sem qualquer privilégio, não mais domina todas as etapas daquilo que produz e passa a ser meramente uma peça de uma máquina composta por várias engrenagens. No caso da realidade brasileira, ainda devemos somar todas as consequências da colonização e do longo período escravocrata que perduram até os dias de hoje, em um processo de modernização contraditório e excludente. Outro aspecto relevante é considerar o modelo de superprodução, a indústria cultural, o consumo fetichista e a “separação” das pessoas como características de uma cultura hipermoderna, ou pós-moderna, que se sustenta em uma dinâmica de produção e consumo que domina todas as esferas da vida. Assim, seguindo a ânsia da própria estrutura em otimizar para obter um fluxo astronômico, o sujeito, agora, precisa agir sem pensar, ou pensar sem profundidade. Nessa lógica hipermoderna de organização laboral, em contraponto à proliferação predatória das multinacionais em uma estrutura global economicamente injusta, muitas comunidades, famílias e entusiastas mantiveram vivas antigas práticas artesanais e suas técnicas. Dessa forma, podemos pensar, por assim dizer, que, ao menos em grupos que não perderam quase todas as coisas (como a terra, a liberdade de escolha e a sua tradição cultural), que algo essencial conseguiu ser mantido ou ressignificado. Na realidade, esse contraponto nos revela a existência de outras formas de compreender a cultura e o trabalho em sua dimensão massificada: apesar de todo o domínio do pop, o é folclore nunca se perde, é como um ato constante de resistência, como aquilo que é fundamental para emprestar um sentido para a vida que precisa existir.
Os ateliers e oficinas, bem como diversas comunidades tradicionais que ainda hoje conservam processos milenares de manipulação da matéria, representam uma força que permanece. “Viver de arte” não é fácil quando não se está no mainstream. Do mesmo modo, em termos econômicos, como poderia a produção familiar concorrer com a escala industrial? Pelos parâmetros econômicos produtivos da atualidade, muitas oficinas e ateliers tornaram-se inviáveis com a constante redução das demandas, fazendo com que mais e mais trabalhadores “autônomos” sejam reposicionados em camadas sociais mais pobres. Por isso o sujeito, que outrora se via na identidade de sua profissão, é obrigado a migrar para compor uma massa de operariado, integrando, até mesmo, a fila dos desempregados. Toda essa movimentação social representa muito mais que o desmantelamento do sujeito, ela agride diretamente nossa identidade cultural, é o desmonte das culturas regionais pela imposição de um modelo globalista violento de produção.
Por outro lado, apesar de todos os aspectos negativos referentes ao trabalho na contemporaneidade, existem certos setores da sociedade que buscam e valorizam produtos e produtores artesanais, produzidos fora da lógica massiva e seriada. Obviamente, são movimentos que partem de uma parcela intelectualizada que venta novas propostas, mesmo que num sentido mais profundo e efetivo sejam altamente questionáveis. No entanto, esta preferência, carrega certos valores que são coerentes e condizem com uma perspectiva humanista sobre o trabalhador e sua atuação.
Em verdade, a crise que enfrentamos agora no campo conceitual sobre o trabalho, exige repensar tudo aquilo que já foi tentado anteriormente, afinal de contas, o questionamento sobre o “contraditório”, citado no primeiro parágrafo, é determinado por nós mesmo, e não é possível se abster. Se, por um lado, a evolução biológica nos deu a inteligência, por outro ela não determinou seu uso, nossas atitudes e suas consequências. Levando em consideração os rumos de nossa reflexão traçados nesse artigo, o aprimoramento coincide com a própria cultura, e é justamente nesse sentido que precisamos nos questionar, pois perder quase todo o tempo de vida em atividades fragmentadas e desvalorizadas, não condiz com o potencial de realização e dignidade humana.
Nesse sentido, o trabalho familiar, ou em microescalas, pode salvar não somente o sentido existencial do indivíduo diante da necessidade do trabalho, mas, também, mudar os rumos da relação humana com os recursos da Terra.
Referências Bibliográficas
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